cosmogonia
autor: Pedro Rocha
Como a poesia se condensou na poética e verteu a poema nomeando,
assim, a universalidade.
Antes de qualquer nome, sentido, cosmo, dimensão ou mundo, existia a poesia se expandindo no espaço sem nenhuma resistência, como se fosse tecido elástico sem limite, como fosse infinita e inesgotável fonte de lava emergindo de uma rachadura no fundo do mar e criando novo fundo. Apenas a poesia se esticava entre adormecidas possibilidades.
Adormecidas possibilidades eram as pré-existentes e inertes poéticas-corpas diversas, sutís ou robustas, imensas ou ínfimas. Constituídas de variadas formas e cores, no entanto sem nenhuma nomenclatura que inaugurasse ideia. Organicidade alguma. Nenhuma organização.
A poesia era emanada de uma fenda primordial que era o centro de tudo e a própria toda. Dessa fenda, no antes do início, poesia fugia e volatizava espaços entres espaços. Apenas velocidade. Subjetividade sem objetiva nem objeto.
O primeiro esboço de desejo primevo, insurge numa corpa-poética que escoava no movimento, na velocidade que a poesia abria com a expansão. A corpa-poética se deslocou na vertigem, obstruindo a passagem de uma parcela de poesia. A poesia se condensou nessa corpa-poética, aderiu à esta corpa-poética, que se posicionava como limite ou obstáculo espetacular do movimento que a poesia imprimia no espaço-velocidade. Essa reação-rejeição-tensão-fricção-tesão que o movimento-espaço-velocidade encontrou no obstáculo criado pela corpa-poética, possibilitou pela primeira vez o surgimento da têmpera-tura. A têmpera-tura desigual entre a poesia-movimento-espaço e a corpa-poética-deslocada-obstáculo, é/foi o que fez com que a poesia-movimento-espaço se condensasse na resistência causada pelo obstáculo-corpa-poética-deslocada, ocasionado pela novidade-deslocamento desta corpa-poética-deslocada, que verteu em-para si mesma, a poema.
A poesia condensa na poética e surge a poema.
Na poema, foi onde nomes começaram a embrulhar corpos. Corpos embrulhados de nomes, passaram às ações. Assim se nomeou-iniciou a universalidade como conhecemos hoje.
(Resta um detalhe a ser adicionado que não foi possível ser traduzido até o momento, porém seu significado pôde ser deduzido observando e estudando os fatos que ocorreram após sua descoberta: segundo essa cosmogonia, ela não pára de reacontecer, de se reafirmar, se recombinar, reestabelecer, restaurar e ressurgir, sempre de uma nova maneira. Uma nova forma. Um novo deslocamento-desejo-movimento. Exatamente por isso, este texto precisa ser alterado por quem o leia. Não é obrigatório, logicamente, é apenas - e deve sempre ser – uma ação fruta do deslocamento-desejo-fricção-tensão-inconformidade-tesão)
Este texto é antiquíssimo. Ainda não se conhece com exatidão sua idade. Estima-se que seja da mesma época em que o ancestral do ser humano começou a utilizar fragmentos de minerais e vegetais como ferramenta para atividades de lazer e não essenciais. Não está escrito em nenhuma língua viva, mais precisamente, não está escrito. São sons emitidos de uma pedra oca que pode ter sido uma pérola. O objeto foi encontrado fossilizado em um enorme concha, no hemisfério sul, por alguém que estava começando a lavar arroz para então cozinha-lo e comer com fígado de galinha.
Antes de abrir o pacote de arroz, esta pessoa percebeu que mesmo fechado, ou parecendo fechado, havia larvas de mariposas dentro do pacote, se mexendo e formando pequenos agrupamentos com os grãos, assim como uma poeira amarronzada que mais parecia o próprio arroz depois de ter passado por dentro de tais larvas, se transformado em energia e fazendo-as crescer e se desenvolver para, mais adiante, se transmutar em outra forma de vida. A poeira amarronzada deveria ser justamente, a parte do arroz que o corpo da larva não conseguiu transformar em energia e o devolveu ao ambiente para que fosse aproveitado de outra maneira.
Mas não foi este o estopim que fez com que o texto fosse desvelado. Não estava entre os grãos de arroz dentro do saco. Esta pessoa que tinha fome, leu certa vez o poema “Praga” de Ana Carolina Assis, em anexo ao final destas páginas. Ao ler o poema ficará evidente que a troca do pacote de arroz não seria possível de ser feita por essa pessoa que se preparava para cozinha-lo. Era necessário reviver alguns aspectos daquele poema que antes marcara esta pessoa e que até o momento da descoberta das larvas, não parecia tão evidente, ou não era constantemente lembrado - embora fosse - por muitas vezes. O arroz foi catado. Lavado. Uma pequena parte cozida e o restante, depois de seco, guardado num pote de vitro com tampa de rosca e vedação de borracha.
Resolvido o problema e a vivência do poema, a poessoa simplesmente soube onde procurar a concha que escondia o fóssil de pedra ou pérola que emitiria o som que a faria traduzir neste texto cosmogonia. Não se pôde entender ainda como isso acontece, mas pôde-se verificar que ocorre.
O ocorrido e aqui relatado, é a evidência de que esta cosmogonia, mesmo não pretendendo ser uma única, aconteceu e seguirá acontecendo. Basta que a poesia se condense na poética e se transforme em poema, nomeando e impingindo ação em uma vida.
Praga (Ana Carolina Assis)
apago pego no sono
ao lado de desconhecidos
sinto fungos a acidez nas coxas
a mari disse cravo óleo de coco
e bicarbonato de sódio curam
a palavra cândida também
significa aguardente de cana
cachaça fungos
que podiam tornar o vinho
em vinho mas
seguem aqui ardendo
quando dão trégua
apago pego no sono
ao lado de desconhecidos
a palavra cândida também
pode ser um nome como a
cândida erêndida que torcia
a roupa de cama branca em
que sua vó a vendia pros homens
a palavra cândida também significa
branca
e lembrei do arroz que
catei com a vó as
mariposas puseram ovos
nos sete quilos de arroz
da casa dos ovos
saíram bichinhos a vó
disse está limpo mas
preciso que você também
cate catamos
tivesse dinheiro não tinha
escolha ela dizia
apago pego no sono
ao lado de desconhecidos
enquanto atravesso arroz já
cândido cachaça e ponte
presidente costa e silva rumo à
tua casa que fica agora
na rua Venceslau que é
como se chama também a praça
da primavera de praga
diálogos
Bandeira brasileira
obra do carnavalesco Leandro Vieira.
Presente no desfile de 2019 da Mangueira.
Rubem Valentim
série Emblema (1979)
Thiago Martins de Melo
Bárbara Balaclava (2016)
Rubem Valentim
Composição 12 (1962)