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sobre o monumento às reticências

É próprio do corpo transmitir vírus, tesão e corrente elétrica, escreveu o artista Nuno Ramos. A energia que circula, que dá choque, que paralisa é a mesma que move as escolhas. O trabalho em questão parte de duas palavras que de alguma forma se contradizem: monumento e reticências. Tunga falava em cola poética como algo que une coisas dispares. Nesse caso digo: a cola poética aqui é a energia.

 

Monumento na sua definição clássica seria um espaço demarcado por algum artefato escultórico com o intuito de ativar a memória. Referente à: acontecimento histórico, personagem ou grupo de pessoas. A monumentalização dos fatos permite a consolidação de uma determinada narrativa. De um determinado ponto de vista da história.

 

No livro de Bartlelby publicado por Erman Melville em 1853, o personagem que dá nome a novela se caracteriza pela frase: prefiro não. Sempre que impelido a realizar alguma ação Bartleby lança sua sentença, negando-se a fazer o que lhe foi demandado. Sem qualquer motivo aparente, sem qualquer reação belicosa. Embora niilista à principio, as forças que levam a esse desejo de inércia nunca são reveladas e isso talvez seja o ponto principal. Não há aqui qualquer vontade de aniquilamento da realidade, de destruição de cânones que justifiquem atitude de não fazer. Não há objeto na frase em questão. O que Bartleby prefere segue indefinido.

 

Reticências são um sinal gráfico que denota algo que poderia ser dito, mas que não foi. Seja por esquecimento, por obviedade, por uma continuidade que pode ser subentendida pelo texto à priori, ou por uma simples escolha de não dizer. Fato é: reticências é sempre sobre algo que não está, sobre incompletude. Essa indefinição, essa não certeza sobre o que se seguirá ao texto, é o que abre campo para a imaginação. Entregar ao interlocutor a possibilidade de terminar a sentença seria o intuito da reticência.

 

A escolha por nomear esse monumento como um espaço dedicado às reticências, refere-se aquilo que não foi dito, a monumentalização da lacuna, da brecha, do desconhecido. Assim como em Bartleby, o não dizer, aqui se torna uma escolha efetiva. Independente do objeto em questão, o ato de não dizer, seja por escolha ou esquecimento, ou mesmo obviedade, seria o que de fato importa. Prefiro não. Nesse sentido, preferir é a ação, o desejo de deixar as coisas em suspenso. A escolha de não fazer é uma forma de fazer.

 

O monumento às reticências não é jamais um monumento ao nada. Pelo contrario, é um espaço aberto, lacunar, dedicado a completude do outro, a multiplicidade narrativa do outro que pode estabelecer suas próprias monumentalizações sem contas a dever com a História Oficial. Só a imaginação rompe a História Oficial, só a ficção e o relato são capazes de reivindicar as individualidades que não estão na História Oficial.

 

É disso que se trata o monumento às reticências: estabelecer uma rede de micro-narrativas a serem imaginadas, como se dessa trama surgisse um monumento no agora. Da rede se faz um corpo coletivo. O que temos aqui é a tentativa ainda incerta de transmitir alguma energia que permita a criação desse corpo coletivo, formado por múltiplas vozes, por múltiplas ficções, por múltiplos corpos individuais demarcando um espaço.

 

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Monumento às reticências é um projeto que se desdobra em três vias – um livro, uma instalação e um site – cada parte tem sua autonomia, embora sejam complementares umas as outras, se negam a ilustrar qualquer coisa.

 

O livro intitulado National Geographic Channel, distribuído gratuitamente, revela a fábula do encontro entre um vagalume sem cabeça e uma lagarta laranja com insônia. Seres que se encontram aniquilados das suas características principais: um vagalume sem cabeça não acende, uma lagarta laranja com insônia troca o dia pela noite e tem sua cor reluzente apagada pela escuridão. Diante do imbróglio decidem juntar-se em um novo ser, um ser híbrido que poderia resolver problemas cruciais à sobrevivência de ambos. A história é contada através de notícias de jornal.

 

A instalação monumento às reticências, vem a ser uma obra pública realizada na Praça da Harmonia, no bairro da Gamboa. O trabalho é composto por 300 metros de fios elétricos e lâmpadas dos mais variados tipos e cores, ligadas em sequencia a partir de uma mesma fonte de energia. A obra, ao contrario das gambiarras de luz tradicionais, não segue um percurso linear. O monumento às reticências é uma trama que ocupa através de sua estrutura rizomática uma grande extensão da praça, modificando a iluminação do espaço e criando novas zonas de luz e sombra.

 

Por fim a terceira parte do projeto: este site. Os convido agora a mergulhar no inventario que foi proposto em colaboração com os artistas e poetas, Domingos Guimaraens, Pedro Rocha e Raïssa de Góes. Esse trabalho criado para um campo virtual, surge de uma lista com trinta palavras-chaves que estruturam a base do monumento às reticências. Dessas palavras construiu-se uma enciclopédia do projeto, um inventário, uma exposição em colaboração com os autores citados. Distante da ideia de ilustração ou da crítica de arte para validar um discurso, cada autor exerceu com liberdade sua voz e criou novos sentidos aquelas palavras. O site é um trabalho. Não é pra entender, justificar. É para abrir: possibilidades, brechas e reticências. A imaginação no poder segue necessária.

Felipe Braga, 2021

 

 

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SITE

realização, proposição "diálogos" e design: Felipe Braga

em colaboração com os autores: Domingos Guimaraens, Pedro Rocha e Raïssa de Góes

LIVRO

realização: Felipe Braga

produção gráfica: Sidnei Balbino

OBRA PÚBLICA

realização: Felipe Braga

iluminação: Alessandro Boschini

produção geral: Carila Matzenbacher

 

 

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Felipe Braga

(1982 – Rio de Janeiro) Artista visual, pesquisador e designer gráfico, doutor em Literatura Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio e mestre em Linguagens Visuais pela EBA-UFRJ.

Realizou exposições individuais e coletivas em algumas instituições como Fundação Ibere Camargo, CAC Vilnuis – Lituânia, Casa França Brasil, EAV Parque Lage, Parque das Ruinas, Museu da Republica, Centro Cultural São Paulo, RedBull Station, Museu de Arte do Rio e Espaço Sergio Porto entre outros. Participou das residências artísticas RedBull (SP) e Largo Residência (Lisboa). Publicou os livros independentes Museu Espetacular de 1 dia e recentemente National Geographic Channel.

www.felipebraga.org

www.felipebraga.com

Domingos Guimaraens

Nasceu em 1979 no Rio de Janeiro. Poeta e artista visual, doutor em Literatura Cultura e contemporaneidade pela PUC-Rio. É organizador de eventos de poesia, artes visuais e artes integradas. De 2003 a 2006 foi um dos organizadores do CEP20000, Centro de Experimentação Poética, que existe no Rio desde 1990. Em 2018 publicou “Agora também antes” pelo selo Mega Mini da Editora 7letras. Em 2011 publicou Um épico, pela Cartoneira cArAtApA. Em 2008 juntamente com Os Sete Novos, lançou o livro Amoramérica. Em 2006 publicou A Gema do Sol também pela editora 7 Letras. Tem textos publicados em antologias de poesia como É agora como nunca (org. Adriana Calcanhoto), Garganta (editoura Azougue), lançado juntamente com áudio livro em vinil. Além de estar incluído na antologia internacional En la outra orilla del silencio, poetas brasileños contemporáneos, publicada no México, pela Libera/Unam, em 2012. Desde 2008 trabalha com o coletivo OPAVIVARÁ! viajando e expondo com o grupo por todo Brasil e no exterior.

www.opavivara.com.br

www.ossetenovos.org

Pedro Rocha

(1976 – Rio de Janeiro) Poeta, editor na Dantes Editora e professor na EAV – Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Publicou os livros “Escrita de Galo”(coleção sec.xxi – 2002) ; “Onze” (Azougue Editorial, 2002); “Chão Inquieto”(Editora 7Letras – 2010); “Experiência do Calor” (Dantes Editorial, selo: Lábia Gentil – 2014); “Ogivas de Urgência” (Editora 7Letras , selo: Megamini – 2015); NERVO VERSO (Independente – 2018); "Ojù Axé" (Editora Autografia, selo: bem-te-li - 2019). Integra o coletivo Trëma. Fundador do CEP 20000. Idealizador do grupo performático FalaPalavra.

www.pedrorocha.site

 

 

Raïssa de Góes

Pesquisadora, artista visual e escritora. Sua formação inclui a Escola de Artes Visuais no Parque Lage e Literatura, com ênfase em Formação do escritor no Departamento de Letras da PUC- Rio. 

Durante esse percurso, lançou quatro títulos pela ed, 7Letras (Malhada Vermelha, Volta, Autorretrato e Casamata) e participou de exposições coletivas como Palavra, Sentado à beira do tempo - poética de Murilo Mendes, entre outras, e de uma individual Memória e Esquecimento na galeria do espaço Cultural Sérgio Porto.

http://raissadegoes.squarespace.com

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